DIREITO TRIBUTÁRIO E O COMBATE AO CORONAVÍRUS: O CONCEITO DE FOLHA DE SALÁRIO PARA AS CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS

01/12/2020

TAX LAW AND THE FIGHT AGAINST CORONAVIRUS: THE DEFINITION OF SALARY FOR SOCIAL SECURITY CONTRIBUTIONS

Por: ALEXANDRE REGO é advogado com atuação na área tributária no escritório Souza Saito Dinamarco & Advogados, bacharel em direito pela Universidade São Judas Tadeu/SP, pós graduado em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – IBET e em Processo Civil pela Universidade de Ribeirão Preto – UNAERP, mestre em Direito Público pela Universidade de Franca - SP, professor de cursos de graduação e pós-graduação em Direito.

Por: GABRIELA FISCHER JUNQUEIRA FRANCO é advogada com atuação na área tributária no escritório Souza Saito Dinamarco & Advogados, bacharel em direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP, pós graduada pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – IBET, e mestre na PUC/SP,


RESUMO: a pandemia do coronavírus tem causado diversas modificações nos mais variados setores da sociedade. Na área jurídica, como não poderia deixar de ser, os efeitos do coronavírus motivam lides e controvérsias postas à disposição do Judiciário, cuja solução carece de novas interpretações que levem em conta as peculiaridades dessa situação excepcional que estamos vivendo. No Direito Tributário, as medidas de combate ao coronavírus geram dúvidas acerca da hipótese de incidência tributária e sua aplicação a casos concretos. É o caso das contribuições previdenciárias incidentes sobre a folha de salários, em situações em que as empresas devem permanecer fechadas, com suas atividades suspensas, em decorrência dos decretos de quarentena e isolamento social instituídos pelo Poder Público. Nessas situações, surge o questionamento sobre a incidência da contribuição previdenciária, haja vista a falta de reciprocidade.

ABSTRACT: the coronavirus pandemic has caused several changes in the most varied sectors of society. In the legal area, as we may have expected, the effects of the coronavirus initiate disputes before Judiciary, which solution demands new interpretations that take into account the peculiarities of this exceptional situation that we are experiencing. In Tax Law, measures to combat the coronavirus raise doubts about the hypothesis of tax incidence and its application to some specific cases. This is the case of social security contributions levied on the payroll, in situations in which companies must remain closed, with their activities suspended, due to the quarantine and social isolation decrees instituted by the Public Power. In these situations, in which “wages” continue to be paid, without the consideration of work, the question arises about the incidence of social security contributions, given the lack of reciprocity.

1. INTRODUÇÃO

A pandemia mundial causada pelo coronavírus dispensa apresentações. O COVID 19 (coronavirus disease) tem causado diversas mudanças e adaptações, não apenas na área da saúde, mas nos mais variados setores da vida humana. Além dos aspectos sociais e econômicos, fortemente abalados pela disseminação da doença, o aspecto jurídico tem sofrido os impactos da pandemia, como não poderia deixar de ser.

O Direito é o instrumento, por excelência, que regula o comportamento humano. Sem adentrar à sua complexidade conceitual, não se pode negar o caráter coercitivo do Direito. Já dizia Kelsen sobre o sistema jurídico ser composto por comandos imperativos, exarados por autoridade competente, cujo descumprimento deverá acarretar as consequências previamente prescritas . Por tais características, pode-se dizer que o Direito representa uma ordem social normativa, voltada a regular as interações humanas. Seu objetivo é obter a pacificação social.

Pois bem, com as medidas de isolamento e quarentena, implementadas por Estados e Municípios no intuito de evitar o contágio pelo coronavírus, nos vemos diante de uma nova conjuntura econômica, social e financeira. A crise deflagrada pela pandemia e os novos comportamentos sociais impulsionados pela doença têm abalado as estruturas jurídicas do ordenamento brasileiro.

É evidente que as normas jurídicas não previam as situações com as quais estamos lidando. Os comportamentos previamente regulados pelas hipóteses normativas das leis e normas que compõem o nosso sistema jurídico, acabam sendo insuficientes perante as mudanças vertiginosas que têm afetado a sociedade. Estamos lidando com uma situação excepcional sem precedentes, o que cria um cenário de dúvida e insegurança jurídica.

Diante disso, visando o combate ao coronavírus, temos visto um processo legislativo acelerado, com a edição de normas jurídicas cujo intuito é suprir lacunas, como forma de sanar a desordem provocada pela pandemia e como tentativa de retomar a ordem social.

Entretanto, apenas as normas jurídicas não são suficientes para resguardar o sistema jurídico perante a pandemia. Mesmo diante do caráter normativo do Direito, apenas será possível alcançar segurança jurídica nesse momento excepcional mediante a solução efetiva das controvérsias decorrentes do coronavírus.

As medidas de combate ao coronavírus causam dúvidas em relação à sua aplicação, e motivam conflitos jurídicos acerca dos efeitos colaterais delas decorrentes. As consequências muitas vezes são imprevisíveis e atingem pessoas e situações de maneira desigual, a depender das características de um determinado caso concreto.

A esse respeito, podemos mencionar a questão das contribuições previdenciárias sobre a folha de salários, que é o tema do presente artigo. As medidas de quarentena e isolamento social geram questionamentos acerca da natureza jurídica dos valores pagos aos colaboradores de empresas cujas atividades encontram-se interrompidas, por força dos decretos editados pelo Poder Público. São situações em que o “salário” continua sendo pago, mesmo os trabalhadores estando impossibilitados de retornar ao trabalho.

Nesse sentido, o conceito de folha de salários no tocante à incidência das contribuições previdenciárias, deve ser analisado perante essa situação excepcional causada pelo coronavírus. Conforme será demonstrado nos itens seguintes, a pandemia demanda soluções extraordinárias do ponto de vista jurídico, e o Direito Tributário não foge à regra.

2. DIREITO TRIBUTÁRIO E O COMBATE AO CORONAVÍRUS: A QUESTÃO DAS CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS
Não há dúvidas de que ano de 2020 ficará marcado como um dos mais desafiadores deste século. O coronavírus se apresenta, pela primeira vez em décadas, como uma ameaça real à saúde e à economia da grande maioria dos países.

Em terras brasileiras, o esforço realizado pelos gestores públicos foi hercúleo tanto na área de saúde, quanto na área econômica. Por não haver remédio ou vacina específica, as medidas de distanciamento social foram adotadas como forma de impedir a propagação do vírus.

Tendo em vista o entendimento do STF , que estabeleceu a competência concorrente dos entes federados, Estados e Municípios instituíram medidas de quarentena, decretando o fechamento e a suspensão das atividades de diversos estabelecimentos empresariais.

A brusca queda de faturamento foi quase unanime entre as empresas, chegando em alguns casos a 100% da receita. Note-se que o direito Constitucional à livre iniciativa e ao livre empreendedorismo foi simplesmente suspenso por tempo indeterminado.

Como não poderia deixar de ser, o combate ao coronavírus gerou uma crise financeira sem precedentes. Por tal razão, diversas iniciativas governamentais foram implementadas visando à recuperação da economia, especialmente no âmbito tributário.

Foram lançados programas para a renegociação de créditos tributários, tais como os implementados pela Lei nº 13.988/2020 e regulamentado pela Portaria PGFN nº 7.820. A Portaria nº 139/2020 determinou a prorrogação do prazo de vencimento das contribuições previdenciárias, Funrural, PIS e COFINS. Até certidões de regularidade fiscal tiveram o prazo de validade estendido.

No que tange às contribuições previdenciárias, merece destaque a Medida Provisória nº 932/2020 que alterou as alíquotas de contribuição aos serviços sociais autônomos, pelo prazo de três meses, de 1º de abril a 30 de junho de 2020. A medida representa um corte de 50% das contribuições ao Sistema S, a fim de minimizar os impactos causados pela pandemia do coronavírus.

Também foi aberta uma linha de crédito especial, implementada pela Medida Provisória nº 944.2020, para o pagamento de salários dos empregados de empresas que se comprometessem a não efetuar demissões durante a pandemia.

Pois bem, tais medidas adotadas na área tributária têm o objetivo de viabilizar a retomada econômica, desonerando os contribuintes nesse momento de extrema crise financeira causada pelo coronavírus.

Entretanto, as providências adotadas pelo Governo não são suficientes. A situação excepcional que estamos vivendo deve ser levada em consideração na análise da própria hipótese de incidência tributária. Deve-se perquirir se os efeitos decorrentes do coronavírus são capazes de alterar a natureza jurídica do fato gerador, provocando em consequência a ilegalidade/inconstitucionalidade da incidência tributária em um caso concreto.

Tal investigação é imprescindível na situação atual. A interpretação das normas jurídicas tributárias deve ter como finalidade garantir um mínimo de segurança jurídica, fornecendo soluções efetivas para as questões colocadas à disposição do Poder Judiciário. Nesse sentido, confira:

Quando temos uma sociedade sufocada por uma pandemia em regime de catástrofe, não deve o direito manusear prerrogativas e atributos para onerar ainda mais os indivíduos atingidos. Segurança jurídica envolve contenutisticamente a proteção do maior número possível de pessoas, e não a preservação abstrata de regimes por amor à forma.

É uma questão de segurança jurídica analisar se as alterações promovidas pelas medidas de contenção ao coronavírus afetam os fatos outrora previstos como hipóteses de incidência tributária, sendo capazes de transformar a sua natureza jurídica. Isso porque, o Direito Tributário é regido pelo princípio da legalidade, que tem como consequência a chamada tipicidade cerrada. O tributo apenas pode incidir sobre os fatos exatamente descritos na norma jurídica tributária, instituída por lei. A esse respeito, confira as lições de Roque Antonio Carrazza:

O tipo tributário (descrição material da exação) há de ser um conceito fechado, seguro, extao, rígido, preciso e reforçador da segurança jurídica. A lei deve, pois, estrutura-lo em numerus clausus, ou, se preferirmos, há de ser uma lei qualificada ou lex stricta. Em síntese, tudo o que é importante em matéria tributária deve passar necessariamente pela lei da pessoa política competente.
Nunca podemos perder de vista que a estrita legalidade é o principal instrumento de revelação e garantia da justiça fiscal – além, é claro, de estar profundamente relacionada com a segurança jurídica dos cidadãos.
Contendo a lei tributária todos os elementos que vão permitir a identificação do fato imponível, fica vedado o emprego da analogia (pelo Poder Judiciário) e da discricionariedade (pela Administração Pública).

Assim, a tipicidade cerrada impõe que a norma tributária apenas incida sobre os fatos exatamente descritos na hipótese de incidência, sem admitir qualquer analogia ou semelhança. A hipótese de incidência traz critérios conotativos, e o fato jurídico tributário deve trazer as exatas denotações dos critérios conotativos descritos na hipótese de incidência tributária.

Uma questão tributária decorrente das medidas de contenção do coronavírus é justamente a incidência de contribuições previdenciárias sobre a folha de salários em relação à remuneração de trabalhadores de empresas obrigadas a se manter fechadas durante a pandemia, como por exemplo academias, bares restaurantes, empresas de eventos em geral, entre outras.

Nas situações em que empregadores mantiveram a remuneração aos funcionários, sem que estes pudessem retornar ao trabalho, em razão dos decretos de quarentena e isolamento, surge a discussão acerca da natureza jurídica dessa remuneração. Seria possível incidir contribuição previdenciária sobre valores pagos aos empregados sem a contraprestação pelo trabalho? É o que se passa a expor.

3. DA EVOLUÇÃO DO TIPO CONSTITUCIONAL DA CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA INCIDENTE SOBRE A FOLHA DE SALÁRIOS

A redação originária da Constituição Federal de 1988 previa o tipo tributário da contribuição sobre a folha de salários da seguinte forma:

Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais:

I- dos empregadores, incidente sobre a folha de salários, o faturamento e o lucro; (grifos nossos)

Após a entrada em vigor do novo Sistema Tributário Nacional estabelecido na Constituição Federal de 1988, foi editada em 3 de julho de 1989 a Lei nº 7.787 que passou a disciplinar a cobrança da contribuição sobre a folha de salários, nos seguintes termos:

Art. 3º A contribuição das empresas em geral e das entidades ou órgãos a ela equiparados, destinada à Previdência Social, incidente sobre a folha de salários, será:
I - de 20% sobre o total das remunerações pagas ou creditadas, a qualquer título, no decorrer do mês, aos segurados empregados, avulsos, autônomos e administradores.

Ocorre, todavia, que a inclusão das expressões “avulsos, autônomos e administradores” constantes da referida lei extrapolou os limites de incidência previstos no Carta Magna, situação que levou o Supremo Tribunal Federal a declarar sua inconstitucionalidade em 12/05/1994:

POR MAIORIA DE VOTOS, O TRIBUNAL CONHECEU DO RECURSO E LHE DEU PROVIMENTO, PARA DECLARAR A INCONSTITUCIONALIDADE DA EXPRESSÃO "AUTÔNOMOS E ADMINISTRADORES", CONTIDA NO INCISO I DO ART. 3º DA LEI Nº 7.787, DE 30.6.89, REFORMAR O ACÓRDÃO PROFERIDO PELA CORTE DE ORIGEM E CONCEDER A SEGURANÇA, A FIM DE DESOBRIGAR OS RECORRENTES DO RECOLHIMENTO DA CONTRIBUIÇÃO INCIDENTE SOBRE A REMUNERAÇÃO PAGA AOS ADMINISTRADORES E TRABALHADORES AUTÔNOMOS, VENCIDOS OS MINS. FRANCISCO REZEK, ILMAR GALVÃO E CARLOS VELLOSO, QUE NÃO CONHECIAM DO RECURSO E DECLARAVAM A CONSTITUCIONALIDADE DA MENCIONADA EXPRESSÃO. VOTOU O PRESIDENTE. FALOU PELOS RECORRENTES, O DR. JOSÉ MORSCHBACHER E, PELO RECORRIDO, A DRA. VERENA EMA NYGAARD. PLENÁRIO, 12.5.94.

Note-se que o STF considerou taxativa a regra contida no art. 195, I, da Constituição Federal, limitando a incidência da contribuição, por meio de lei ordinária, às verbas de natureza salarial.

Em 15 de dezembro de 1998, na tentativa de sanar as inconstitucionalidades e ilegalidades ainda praticadas quando da apuração da base de cálculo da contribuição sobre a folha de salários, foi promulgada a Emenda Constitucional n.º 20/98, ampliando o tipo constitucional da exação para albergar rendimentos pagos aos empregados e não empregados.

Em virtude da Emenda Constitucional n.º 20/98, o artigo 195, I, alínea “a”, da Constituição Federal, passou a constar da seguinte forma:

Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais:
I – do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre:
a) a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício; (grifos nossos)

De se notar que a base de cálculo das contribuições sobre a folha de salários passou a ser denominada Folha de Rendimentos, incluindo até pagamentos realizados a pessoa física sem vínculo empregatício.

Desde 1991, a contribuição a cargo da empresa destinada ao custeio da seguridade social incidente sobre a folha de salários é regulada pelo inciso I, do artigo 29 da Lei nº 8.212/91:

Art. 22. A contribuição a cargo da empresa, destinada à Seguridade Social, além do disposto no art. 23, é de: 6
I - vinte por cento sobre o total das remunerações pagas, devidas ou creditadas a qualquer título, durante o mês, aos segurados empregados e trabalhadores avulsos que lhe prestem serviços, destinadas a retribuir o trabalho, qualquer que seja a sua forma, inclusive as gorjetas, os ganhos habituais sob a forma de utilidades e os adiantamentos decorrentes de reajuste salarial, quer pelos serviços efetivamente prestados, quer pelo tempo à disposição do empregador ou tomador de serviços, nos termos da lei ou do contrato ou, ainda, de convenção ou acordo coletivo de trabalho ou sentença normativa.

Importante registrar que tanto o novo tipo tributário previsto na alínea “a”, do inciso I, do artigo 195 da Constituição Federal, quanto a própria Lei nº 8.212/91, se limitaram a ampliar a base de cálculo da exação, de Folha de Salários para Folha de Rendimentos, sem englobar verbas de natureza indenizatória.

Conforme expressamente destacado na legislação, a contribuição somente incidirá sobre verbas destinadas a “retribuir o trabalho.”

Ou seja, não obstante a “ampliação” do tipo tributário da exação, decorrente de alteração pela Emenda Constitucional n.º 20/98, ainda não há previsão constitucional ou legal, desde a entrada em vigor da Carta Magna de 1988, para incidência de contribuições sobre verbas de natureza indenizatória ou prestação previdenciária.

4. DA NOVA CONCEITUAÇÃO DOS PAGAMENTOS REALIZADOS SEM CONTRAPRESTAÇÃO

A questão nuclear colocada no presente artigo é apontar a natureza jurídica dos pagamentos realizados pelas empresas aos seus empregados, sem a respectiva contraprestação pela remuneração, por conta de situação extraordinária onde o Estado impede que determinadas empresas realizem suas atividades industriais, comerciais ou de prestação de serviços e, por consequência, analisar a possibilidade de incidência de contribuições previdenciárias sobre elas.

O primeiro ponto passa necessariamente pela limitação Constitucional e legal à incidência das aludidas contribuições sobre verbas de natureza salarial, constantes da folha de salários das empresas.

Como é cediço, inexiste um conceito único e estático de salário na legislação pátria, todavia, existem elementos básicos que permitem o enquadramento de determinada verba como salarial, são eles a habitualidade, a periodicidade, a quantificação, a essencialidade e a reciprocidade .

Inicialmente, registramos que não se desconhece aqui a superação parcial da teoria da contraprestação pura para se configurar a natureza de determinada verba como salarial.

A doutrina e a jurisprudência mais recentes reconhecem em diversas situações a natureza salarial de verbas pagas aos colaboradores das empresas mesmo sem a efetiva prestação de serviços.

Normalmente, são casos onde o trabalhador se limita a ficar à disposição do empregador.

Nas lições de Sérgio Pinto Martins:

Hoje, a natureza salarial do pagamento não ocorre apenas quando haja prestação de serviços, mas nos períodos em que o empregado está à disposição do empregador, durante os períodos de interrupção do contrato de trabalho ou outros que a lei indicar. Inexiste, portanto, rígida correlação entre o trabalho prestado e o salário pago.

Não é por outra razão que a própria CLT considera o tempo à disposição do empregador como serviço efetivo:

Art. 4º - Considera-se como de serviço efetivo o período em que o empregado esteja à disposição do empregador, aguardando ou executando ordens, salvo disposição especial expressamente consignada.

Analisando-se o caso atual, se os colaboradores estivessem afastados das empresas por liberalidade do empregador não haveria dúvida de que a verba por eles recebida teria natureza salarial.

Ocorre que, por força da pandemia, determinados seguimentos simplesmente estão impedidos de exercer suas atividades, como shopping centers, academias, salões de beleza, clínicas de estéticas, entre outros.

O próprio Estado impede o exercício da livre iniciativa e o direito ao exercício regular de uma profissão.

Neste caso, não se pode falar em tempo à disposição do empregador, pois a atividade econômica não pode ser exercida.

Note-se que a legislação estabelece penas de multas até a lacração para estabelecimentos que abrirem suas portas em tempos de quarentena obrigatória.

Sem a reciprocidade aqui entendida como a possibilidade de exercer seu trabalho ou a mera expectativa de fazê-lo não há como sustentar que estes pagamentos tenham natureza salarial, apesar de estarem na folha de salários, nos termos exigidos pelo artigo 195 da Constituição Federal.

Importante lembrar que na mais pura dicção da própria Lei nº 8.212/91 a contribuição somente incida sobre verbas destinadas a “retribuir o trabalho”.

Ora, mutatis mutandis, é a mesma situação reiteradamente vedada por nossos Tribunais Superiores que ocorre em relação à incidência da contribuição sobre a folha de salários no que tange à importância paga a título de aviso prévio indenizado ao colaborador demitido.

Guardadas as devidas proporções e os cuidados que o bom uso de toda as formas de analogia impõem, também naquela hipótese não há a incidência da contribuição sobre a folha porque o colaborador não “trabalhou’ durante o período em que o aviso deixou de ser cumprido.

Essencialmente, quando o colaborador da empresa trabalha durante a vigência do aviso prévio, a verba é tributável, quando não trabalha, a verba perde a natureza salarial.

Sobre o tema, oportunas foram as palavras do ilustre Ministro Teori Albino Zavascki do Colendo Superior Tribunal de Justiça:

(...) se o aviso prévio é indenizado, no período que lhe corresponderia o empregado não presta trabalho algum, nem fica à disposição do empregador. Assim, por ser ela estranha à hipótese de incidência, é irrelevante a circunstância de não haver previsão legal de isenção em relação a tal verba.


Também é possível se traçar um paralelo entre a situação descrita por conta da pandemia e o pagamento do terço constitucional de férias aos colaboradores empregados, durante a vigência do contrato de trabalho, onde também não há a incidência da contribuição porquanto inexiste contraprestação.

Não foi por outra razão que o ilustre Ministro do Colendo Superior Tribunal de Justiça Mauro Campbell assim decidiu:

(...) a importância paga a título de terço constitucional de férias não se destina a retribuir serviços prestados nem configura tempo à disposição do empregador, especialmente porque possui natureza indenizatória/compensatória, conforme entendimento do Supremo Tribunal Federal. Destarte, a importância em comento não se enquadra no disposto no art. 22, I, da Lei 8.212/91, nem se amolda ao conceito de salário de contribuição do empregado, previsto no art. 28, I, da Lei 8.212/91, sendo que a interpretação, a contrario senso, do art. 28, § 9º, da lei referida — como pleiteia a Fazenda Nacional — não possui o condão de alterar a natureza do terço constitucional de férias, transformando-o em verba remuneratória .

A pandemia e a consequente quarentena criou uma nova modalidade de pagamentos decorrentes da existência de contrato de trabalho que não tem natureza salarial.

Não é possível se atribuir natureza salarial a verbas que não tem nenhum tipo de contraprestação, que não tenham caráter retributivo.

Por mais que se estenda o conceito de “natureza salarial” para se ajustar determinada verba é necessário lembrar que todos os conceitos constitucionais, ainda que não totalmente determinados, têm um limite de resistência, com nos ensina o ilustre Ministro do Supremo Tribunal Federal, César Peluso:

As palavras (signos), assim na linguagem natural, como na técnica, de ambas as quais se vale o direito positivo para a construção do tecido normativo, são potencialmente vagas (...). Mas isso também significa que, por maiores que sejam tais imprecisões, há sempre um limite de resistência, um conteúdo semântico mínimo recognoscível a cada vocábulo, para além do qual, parafraseando ECO (ECO, Humberto. Interperetação e superinterpretação. Trad.: MF. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 50.), o intérprete não está “autorizado a dizer que a mensagem pode significar qualquer coisa. Pode significar muitas coisas, mas há sentidos que seria despropositado sugerir .

Não há como se sustentar que um pagamento feito por uma empresa impedida de exercer suas atividades a um colaborador possa ter natureza salarial, à evidência, estamos diante de uma indenização.

Note-se que é importante fazermos aqui uma nova distinção entre a empresa que teve que cessar suas atividades por sua culpa, como por exemplo por falta de algum alvará, atividade ilícita ou mesmo uma interdição por órgãos de fiscalização, e aquela que teve sua atividade suspensa pelo Estado e não concorreu para seu fechamento.

Vale lembrar que o disposto no artigo 110 do CTN veda qualquer tentativa de se criar um conceito de salário para fins exclusivamente tributários.

Art. 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias.

Por mais esforço que se faça, não é possível a incidência das contribuições previstas no artigo 195, I, da Carta Magna sobre verbas pagas a colaboradores empregados sem qualquer contraprestação.

Por fim, em tempos de caixa reduzido, sempre oportunas são as palavras do ilustre ministro Marco Aurélio, sobre a importância do respeito à organicidade do direito:

“(...). Não me canso de ressaltar, principalmente neste embate Estado e cidadão, Estado e contribuinte, que a Carta Política da República é o elemento definidor do almejado equilíbrio, freando a fúria fiscal do Estado. Dificuldades de caixas não podem ser potencializadas a ponto de olvidarem-se os parâmetros constitucionais. Na organicidade do Direito está a segurança do cidadão, pelo que não se pode perder de vista que o meio justifica o fim, mas não este aquele.” (grifos nossos)

Em termos conclusivos, podemos afirmar que, enquanto o Estado impedir o exercício de algumas atividades, os pagamentos feitos aos colaboradores destas empresas não estão sujeitos ao pagamento de contribuições previdenciárias.

5. CONCLUSÃO

Conforme visto, a pandemia do coronavírus causou diversas alterações no âmbito econômico e social, as quais são refletidas também para o sistema jurídico. Especialmente as medidas de combate à doença, que incluem a suspensão das atividades empresariais e demais atos de quarentena e isolamento social, acabam por afetar substancialmente a aplicação das normas jurídicas aos casos concretos.

O tema tratado no presente artigo é um desses casos. Trata-se da incidência de contribuições previdenciárias sobre valores pagos a colaboradores de empresas que foram obrigadas a paralisar suas atividades durante o período de quarentena, sendo mantidos os “salários” sem que houvesse a contraprestação do trabalho.

Embora o Governo tenha editado atos normativos no âmbito tributário, visando à desoneração dos contribuintes, como forma de retomar a atividade empresarial, tais medidas não são por si só suficientes. As regras de quarentena implementadas pelo Poder Público causaram alterações substanciais na natureza jurídica do fato gerador de tributos, como é o caso das contribuições previdenciárias. A interpretação das normas jurídicas tributárias, de maneira que leve em consideração essas alterações, se mostra imprescindível para garantir um mínimo de segurança jurídica em um momento tão conturbado como o presente.

Conforme visto, historicamente a contribuição previdenciária sobre a folha de salários pressupõe a contraprestação do trabalho, de forma que caracterize uma reciprocidade entre os valores pagos aos trabalhadores e a execução do trabalho em regime de subordinação. Não há qualquer previsão legal que admita a incidência de contribuições previdenciárias sobre verbas de caráter indenizatório, dispendidas por mera liberalidade do empregador.

Pois bem, como efeito das medidas de combate ao coronavírus, passamos a ter a figura do “salário” pago a colaboradores obrigados a permanecer em suas casas, impossibilitados de realizar suas atividades laborativas. É evidente que o dispêndio dessas verbas pelo empregador não deve representar hipótese de incidência tributária para fins de contribuições previdenciárias. A situação excepcional causada pela pandemia acabou por alterar a natureza jurídica do fato gerador das contribuições em situações como essa.

Não havendo reciprocidade, a nosso ver esses valores devem ser considerados como espécies de verbas indenizatórias, não sujeitas à incidência da contribuição previdenciária. Em razão da tipicidade cerrada que rege o Direito Tributário, não se pode admitir como fato gerador uma situação que não esteja expressamente prevista na hipótese de incidência tributária.

Como conclusão de todo o exposto, pode-se reconhecer a ilegitimidade da incidência de contribuições previdenciárias sobre verbas pagas a colaboradores de empresas impedidas de funcionar em decorrência de decretos de quarentena emanados pelo Poder Público. Isso porque, conforme visto, tais verbas carecem de natureza salarial, haja vista a inexistência do elemento imprescindível da reciprocidade.

6. REFERÊNCIAS

CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, pp. 266-267.

CARVALHO. Paulo de Barros. Direito Tributário: fundamentos jurídicos da incidência. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015, pp. 35-36.

KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. São Paulo: editora Martins Fontes, 1998, p. 25.

MARTINS, Sérgio Pinto. Direito da Seguridade Social. 27.ed. 2009. São Paulo: Atlas, p.165.

MARTINS, Sérgio Pinto. Direito do Trabalho. 27. ed. 2011: São Paulo: Atlas. p. 233

TOMELIN, Georghio Alessandro. Escassez geral nas catástrofes: cidadãos sufocados pelas prerrogativas da Administração Pública. In: WARDE, Walfrido. VALIM, Rafael (coord.). As consequências da COVID-19 no Direito Brasileiro, p. 37.